Cultura brasileira na Educação Infantil: como fazer essa conexão?

Cultura brasileira na Educação Infantil: como fazer essa conexão?

Ano vai, ano vem, as questões que envolvem a cultura na Educação Infantil trazem reflexão, discussão, conteúdos estimulantes e também certos desconfortos. Trouxemos as palavras das educadoras Tania Fukelman Landau, que valoriza o território cultural na formação de professores, da diretora Cibele Racy, que colocou em prática uma intensa vida cultural na icônica EMEI Nelson Mandela (SP), e da Rosane Almeida, arte-educadora e brincante, cofundadora do Instituto Brincante, SP.

aula de jongo

Tempo de Creche – Qual deve ser o olhar da Educação Infantil para Cultura?

Cibele – Compreendemos hoje que a escola não pode ser um território apartado de seu contexto histórico e social e dessa forma não poderia estar distante das mais diversas formas de expressão cultural, sendo por si só uma delas. Não se trata apenas de reproduzi-las no contexto escolar, mas inseri-las como objeto de estudo e trabalho no currículo da unidade.

Esta visão foi incorporada às nossas práticas de forma consciente quando optamos por eleger como tema transversal dos projetos didáticos a pluralidade cultural e biológica do povo brasileiro e, consequentemente, da história de vida de nossas crianças e suas famílias.

EMEI Nelson Mandela

Tania – Bem, vamos dizer que as crianças, as famílias, professores e demais atores da escola e do entorno do bairro e da cidade formam uma micro sociedade que introduz seus pequenos no nosso vasto universo cultural e social.  Entendendo aqui que cultura não é algo imutável e estático, mas sim criado e recriado por seus protagonistas.

Milho assadoFeijão com arroz não é servido na refeição das creches e centros de educação infantil atoa, esta mistura saborosa e nutritiva é expressão da nossa cultura. É resultado da construção do nosso paladar brasileiro, pode ser preto como no Rio de janeiro, feijão de corda como no Nordeste ou um belo tutu Mineiro. Isto sem falar da famosa feijoada fruto da criação dos negros escravos de um Brasil colonial. ( não quero dizer que vamos introduzir feijoada no cardápio das crianças!)

Do samba ao funk, passado e presente tecemos nossas semelhanças e nossas diferenças. Somos mineiros, cariocas, paulistas, nordestinos, gaúchos convivendo em um mesmo espaço.

E, se estendermos este conceito, somos índios, negros, portugueses, italianos, bolivianos, judeus, muçulmanos, evangélicos e a mistura de tudo isto e um pouco mais. Somos o tecido na nossa própria história, diversa e rica de expressões: a dança, a música, a literatura, gastronomia e artes.

Aluno com imagem do islamismoTempo de Creche – Como é possível trazer esse contexto para o cotidiano da escola?

Cibele – Valorizamos as manifestações culturais como a expressão máxima do que somos e dos valores que defendemos, por mais diverso e contraditório que isso possa ser, portanto não como um produto a ser esporadicamente vivido em eventos escolares, mas como essência que permeia e define nossas relações, diariamente. Trabalhar com elementos de uma cultura significa compreendê-los para nos conhecermos. Consiste, em especial, no fato de iluminarmos dados de nossa história que nos foram suprimidos.

Tania – Resgatar as raízes culturais das famílias brasileiras já seria um bom motivo para levar o cordel, o maracatu ou o bumba meu boi para a escola. Não bastasse este argumento, temos também, nas danças, no cancioneiro, no artesanato, nas festividades e neste vasto imaginário popular uma boa possibilidade de repertoriar as crianças, de desenvolver suas linguagens e formas de expressão, além do constante exercício de socialização, enraizamento e respeito ao próximo.

O que cabe no BrasilQuem sabe fazer um cesto de palha ou um carrinho de madeira? E uma boneca de milho? Que tal convidar uma avó para ensinar as quadrinhas da sua infância ou contar um causo ou história da tradição oral? O que dizer dos materiais que compõem as salas e o dia a dia das crianças, tem elementos típicos da nossa tradição como palha, madeira, barro, tecido, terra, penas, sementes? Brinquedos industrializados ou artesanais?

Nosso patrimônio cultural é do ritmo, da poesia, da imaginação e do movimento, valoriza o corpo, a criação coletiva e colaborativa, nossas origens nos colocam mais próximos da natureza e assim como os índios que viviam nesta terra nos fazem sentir mais conectados com ela.

AlunaTempo de Creche – Como as famílias participam da vida cultural das escolas? Qual o papel delas nesse território?

Cibele – A participação familiar na elaboração dos projetos nos traz elementos que alimentam nossas ações de forma plural e única. Durante 2016, por exemplo, mergulhamos no estudo das manifestações populares e suas múltiplas influências. Trazendo a cultura familiar e suas origens para os territórios de aprendizagem, decidimos com elas pela introdução de aulas de jongo e maculelê durante todo o ano.

Ao mesmo tempo trouxemos toda a diversidade de crenças e religiões que compõem o universo de nossa comunidade escolar, com o cuidado de não trabalharmos o conceito de cultura como algo excludente e fragmentado.

Figura de afeto

Portanto, conhecer, reconhecer, transformar e produzir cultura é uma forma de compreendermos o mundo e que, invariavelmente, nos leva a promoção de ações afirmativas como forma de combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação. É uma forma de lermos o mundo com outros olhos. È de fato contextualizar e humanizar o currículo escolar, trazendo a vida para dentro dos muros da escola.

Tania – Conhecer as famílias para compartilhar, para trazer o potencial que cada uma possui é construir novos significados em conjunto e educar verdadeiramente em comunidade. A cultura popular brasileira precisa fazer parte do dia a dia das crianças para ser vivenciada e não contemplada como algo externo, pitoresco ou até mesmo estereotipado. As tradições têm uma essência e é esta essência que precisa ser valorizada e trazida para o interior das escolas e das famílias como objeto de reflexão e formação. Dar ovo de pascoa e levar o coelhinho para escola por que? Quais aspectos estão envolvidos nessa celebração: o lado consumista, o religioso ou o cultural? O que queremos valorizar com as nossas crianças? É fundamental planejarmos as formas e abordagens que daremos para estes temas culturais.

Bricadeira com as redes

Para isto é necessário abrir espaços de diálogo na escola, refletir com as famílias para construir um projeto de educação em conjunto: como será a alimentação na escola? Quais e como as datas serão comemoradas, festejadas ou celebradas? Quem sabe fazer um cesto de palha ou um carrinho de madeira? E uma boneca de milho? Que tal convidar uma avó para ensinar as quadrinhas da sua infância ou contar um causo ou história da tradição oral? O que dizer dos materiais que compõem as salas e o dia a dia das crianças, tem elementos típicos da nossa tradição como palha, madeira, barro, tecido, terra, penas, sementes? Brinquedos industrializados ou artesanais? Dia do índio ou todo dia é dia de índio?

Tempo de Creche – Por que o repertório de manifestações culturais brasileiras é pouco valorizado ou trabalhado pelos professores da Educação Infantil?

Rosane – Para que os professores acessem esse repertório falta uma boa experiência pessoal com ele. Não limitada ao repertório cultural, existe uma certa lacuna na formação dos professores no que diz respeito ao desenvolvimento da sensibilidade, da criatividade e no potencial de cada indivíduo para interferir no seu meio. Cada vez se tem mais certeza do que dar para as crianças mas se fala muito pouco sobre o que foi oferecido para os professores para que eles possam apresentar para as crianças. Não tem como esperar que o professor vá oferecer qualquer coisa que ele não tenha tido uma experiência viva.

Detalhe O que cabe no BrasilAlém dessa questão, é preciso entender que a criança vem com uma história de família. Qual é a história de família desta criança? Quando falo de família, falo de uma ancestralidade, um passado que vai para além do dia a dia. Porém, é possível que esta criança também não tenha acesso a isto. Ela não se apropria da cultura dos pais porque os pais também não tiveram essa vivência.

Essa é a razão pela qual eu acredito que esse universo não faça parte do currículo infantil, ou de uma educação infantil que começa em casa. O universo cultural precisa ser considerado um valor e geralmente ele só é compreendido enquanto forma. E quando a gente pensa em forma, como uma roda de coco, os passos de ciranda, um passo de maracatu ou um personagem, estas formas são datadas, localizadas e são desnecessárias em outros contextos que não os originais preservados. A roda de coco feita na zona da mata pernambucana não vai ser significativa para uma criança paulista na escola, a menos que se compreendam os princípios que fizeram com que ela fosse gerada na zona da mata de Pernambuco.

Se compreendermos isso como princípio, é possível que os mesmos desafios nutridos na zona da mata possam nutrir as crianças. Se o entendimento ficar somente na forma, ele não serve para nada!

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PARA SABER MAIS…

Cibele RacyCibele Racy é educadora, trabalhou na Secretaria Municipal de Educação da Cidade de São Paulo e foi diretora da EMEI Nelson Mandela em São Paulo por mais de uma década.

rosane almeidaRosane Almeida é atriz, dançarina, circence, musicista, educadora e cofundadora do Instituto Brincante. Dedicada ao estudo da diversidade cultural do país e à valorização de seu imaginário e universo simbólico. Mais de 20 anos frente à coordenação pedagógica do Instituto, responsável e autora de diversas frentes de ação.

Tania Fukelmann Landau imagemTania Fukelmann Landau é pedagoga pela PUC-SP e Especialista em Educação Lúdica pelo ISEVEC. Colaboradora em projetos e publicação da Fundação ABRINQ. Membro da diretoria da Casa do Povo (instituição cultural). Atualmente se dedica integralmente à formação continuada de educadores e aos estudos sobre a infância.

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