A questão de gênero começa na equipe pedagógica!

A questão de gênero começa na equipe pedagógica!

O que você acha de ter um professor do sexo masculino na equipe pedagógica da Educação Infantil? Como você vê um professor assumindo uma turma de bebês ou fazendo dupla com uma professora? Professores homens impactam na educação das crianças? E na relação da escola com as famílias? A questão de gênero na educação infantil começa na composição da equipe pedagógica. Vamos conhecer a experiência da Associação Nossa Turma, SP, que há dois anos conta com um professor em sua equipe.

Chegamos numa das sala de Mini Grupo 2 (3 a 4 anos) da Nossa Turma por volta do meio dia. Nos deparamos com uma cena deliciosa de ficar olhando de longe. Sabe quando procuramos observar sem interferir? Encontramos o professor Wellington sozinho na sala com suas crianças, deitado no colchonete, embalando dois pequenos para dormir. Tudo estava tranquilo e uma sensação de aconchego pairava no ar… quanta ternura! Isso nos trouxe as memórias de uma experiência importante de ser compartilhada.

Professor homem e a CrecheNo final de 2014 prestamos consultoria formativa para a Nossa Turma, que passava por grandes transformações para concretizar um convenio com a prefeitura de São Paulo. Além de planejar as alterações estruturais e o aprofundar os conteúdos da Educação Infantil, a equipe de profissionais também precisou se reformular.

Realizamos uma série de dinâmicas para selecionar novos professores e auxiliares. Numa delas aconteceu uma surpresa: surgiu um candidato masculino para concorrer a uma das vagas para professor… de bebês de 1 a 3 anos!!!

Será…? Como seria o trabalho com bebês realizado por um homem? Como a equipe e as famílias veriam essa questão? E as comunidades atendidas pela creche?

Ocorre que a Educação Infantil para o professor Wellington não era uma taboa de salvação ou a única opção de emprego. Ele tinha intenção em se aventurar com os pequeninos. Tinha esse desejo claro e sabia que enfrentaria barreiras e conquistas.

Wellington saiu-se bem na seleção e, após muita discussão, a Nossa Turma também aceitou o desafio de contratá-lo.

Hoje Wellington está finalizando o trabalho com a segunda turma. Já trabalhou com pequenos de 2 e de 3 anos. Conquistou as crianças, as famílias e ocupou um lugar especial entre a equipe pedagógica. Mais do que isso, o professor representa para todos os pequenos da creche uma importante referência masculina, sensível, competente e responsável.

Para contar sobre essa experiência, conversamos com a diretora, a coordenadora, a professora que compartilha a turma e, claro, com o Wellington.

Questão de gênero na Creche

Conversando com a gestão…

Tempo de Creche Vocês tem um professor do sexo masculino na equipe. Como foi contratá-lo? Houve preconceito pelo fato dele ser homem?

Maribel (diretora da Educação Infantil na época da seleção do Wellington) – Sim, no início houve um preconceito muito grande. A minha maior dificuldade foram os prováveis tabus dos pais: deixar os pequenos com um professor homem, levar as meninas ao banheiro, momentos de emergência… Mas isto não aconteceu. As crianças acabaram indo para o banheiro naturalmente. Quando precisam ser acompanhadas, uma professora mulher o faz. Tudo foi sendo solucionando gradativamente, e ele acabou tendo um papel importante por conta da afetividade masculina, que é um diferencial nesta faixa etária.
Ele soube eliminar o meu preconceito e conquistar o seu espaço sem transtorno. Hoje conta com a aceitação de todo o grupo de crianças, das professoras e dos pais. Tudo foi se resolvendo.

Adriana (diretora atual do CEI Nossa Turma) – Eu fiquei insegura no começo. Não por preconceito, mas porque eu não conhecia a situação de ter um homem como professor. Foi uma novidade. Mas o resultado é muito bom. É ótimo.

Martha (coordenadora) – Ele se tornou um referencial masculino na creche, uma autoridade masculina. Todas as crianças têm um respeito diferente por ele.
A situação da figura do homem na Educação Infantil me ajudou a refletir sobre a postura ética do professor, seja ele homem ou mulher, frente à intimidade da criança. Porque nós já tivemos meninos de Berçário 2 (18 meses) que não queriam fazer cocô na frente da professora. Custamos a perceber isso. Foi preciso entrar no banheiro, ficar perto, mas ocupar uma posição onde a criança não enxergasse a professora, para que ele pudesse fazer suas necessidades.

Tempo de Creche – Você está dizendo que, às vezes, nos escapam as questões de gênero relativas à professora mulher?

Martha – Sim. A criança também tem direito à sua privacidade. Nesse caso ele não queria que ninguém ficasse olhando para ele no momento de intimidade.

Adriana – Em relação ao Wellington, ainda existe o preconceito por parte dos pais. Hoje bem menor, nas entrelinhas, mas é perceptível. Nós mantivemos o combinado inicial, prometido para os pais na reunião de apresentação do professor, de que ele não acompanharia as crianças ao banheiro. Não importa se é menino ou menina. Quando ele estava no Mini Grupo 1, o acordo era a professora trocar a fralda. Neste ano ele está no Mini Grupo 2, que não usa mais fralda. Depois de conhecer o trabalho do Wellington, sabemos que essa restrição não seria mais necessária, mas assumimos um compromisso com as famílias.
Atualmente ele é bem aceito pelos pais e se tornou uma figura masculina na creche. É um bom profissional de educação e representa um ponto de equilíbrio para a equipe. Com ele não tem mi-mi-mi! Ele é mais racional e objetivo.

Martha – Ele é amigo de todas as professoras. Até resolve os conflitos entre elas. E é muito querido pelas crianças. No aniversário, todas cantaram parabéns para ele, inclusive as crianças das outras salas. Ele é como um herói.

Questão de gênero na Educação Infantil

Conversando com a dupla de sala

O Wellington compartilha o trabalho pedagógico do Mini Grupo 2 com a professora Fabiana. Tempo de Creche também conversou com ela sobre a experiência de fazer dupla com um professor do sexo masculino.

Tempo de Creche – Como você se sentiu quando soube que iria trabalhar com um professor na sua sala?

Fabiana – Eu já conhecia o Wellington por conta do trabalho que ele fez no ano passado com o Mini Grupo 1. Então, quando fui comunicada, não estranhei. Talvez a primeira parceira dele aqui na creche tenha estranhado mais. Mas quando entrei na sala e me deparei com um homem… foi esquisito! Mas a sensação logo passou. Ele é uma pessoa especial, trata as crianças com muito carinho, com amor.

Tempo de Creche – Como é fazer planejamento com ele? É diferente de planejar com uma companheira do sexo feminino?

Fabiana – Não tem diferença. Nós trabalhamos com o projeto Brinquedos e brincadeiras. Ele tem bons conteúdos pedagógicos e contribuiu.

Tempo de Creche – Como vocês se organizam na questão do cuidado? Sabendo que isso desperta certo receio por parte das famílias.

Fabiana – Quando o Wellington entrou na Nossa Turma, foi combinado que ele não acompanharia as crianças ao banheiro. Assim, a parte do banheiro fica comigo e, nesses momentos, ele fica com a sala.

Tempo de Creche – Como é com os outros cuidados: alimentação, higiene das mãos, dos dentes?

Fabiana – Normal, ele participa de tudo. Essa é uma profissão muito gratificante e às vezes os homens têm medo. Mas não tem que ter!

Professor homem na Creche

Finalmente, conversamos com o professor Wellington…

Tempo de Creche – Você é um exemplo para muitos professores homens que desejam trabalhar na Educação Infantil mas não se arriscam. Como foi este processo para você?

Wellington – No começo, a rotina era totalmente diferente. Eu nunca tinha trabalhado no ambiente escolar. (Wellington trabalhava com educação de jovens em projetos sociais). O mais difícil foi adequar o conteúdo pedagógico: saber lidar com os pequenos, o formato, o currículo e a rotina da creche. Isto levou um tempo e as professoras contribuíram com o meu aprendizado. No final, lidar com as crianças foi fácil porque eu sempre gostei delas.

Tempo de Creche – Você trabalhava com jovens. O que te levou a trabalhar com crianças?

Wellington – Quando terminei a faculdade, compreendi que deveria passar por todas as faixas da Educação. Nesse sentido, a primeira etapa seria a experiência com a Educação Infantil. Num dos estágios da faculdade, conheci um professor de Educação Infantil. Ele dava aula numa EMEI e era o único homem da escola. Eu gostei do trabalho que ele fazia. Ao conversar com ele, soube que ele enfrentou resistência por parte dos pais que isso causou insegurança. Mas, depois, ele conquistou todo mundo. Professoras, pais e crianças adoravam ele. Aí resolvi arriscar e entrar na Educação Infantil.

Tempo de Creche – Você também se sentiu inseguro no começo?

Wellington – Sim, muito inseguro. Principalmente ao lidar com os pais. No começo não me aceitaram bem. Também senti dificuldade com a equipe pedagógica, que nunca tinha trabalhado lado a lado com um homem. Foi aos poucos que o meu trabalho se revelou. Sempre busquei respeitar os pais e nunca bati de frente! Acredito que a qualidade do meu trabalho é que vai mostrar porque eu estou aqui.

Tempo de Creche – Que tipo de questão os pais colocam para você?

Professor homem na Educação InfantilWellington – No começo era a questão de trocar a fralda e levar no banheiro. Eles não queriam que eu participasse desses cuidados. Mas as crianças não enxergam esta questão dessa forma, elas não pensam “aquele professor homem não pode me levar ao banheiro”. O que existe é uma construção do lugar que ocupo com as crianças que tem uma relação afetiva complicada com os pais. Mas eles mudaram essa visão à medida que as crianças iam para casa falando do trabalho e comentando que “o professor toca violão”, “o professor brincou com a gente”, professor faz isto, faz aquilo. As crianças quebraram o tabu e a resistência dos pais.

Tempo de Creche – O que te encanta mais com as crianças?

Wellington – Tem muitas coisas, mas em especial quando os vemos conquistando autonomia. Estava comentando com a Fabiana sobre a brincadeira Corre Cotia. Nós ensinamos no primeiro semestre e repetimos umas três vezes. Agora, no segundo semestre, eles estão brincando sozinhos e por iniciativa própria. A gente não precisa orientar nada. Eles sentam na roda, pegam o paninho e falam “agora você tem que correr”, “agora tem que sentar”. Acompanhar esta autonomia, em que não precisamos fazer intervenções, é sensacional!

Tempo de Creche – A gente sabe que o espaço da Educação Infantil é predominantemente feminino. Tem uma aura de maternidade. Como isto chega em você? Como lida com a crença de que só mulher pertence a este espaço de educação?

Wellington – Eu tenho procurado ler bastante. É uma questão histórica a relação da mulher com a Educação Infantil. Isto tem me instigado a trabalhar e produzir mais. No futuro quero fazer uma pesquisa, não tenho encontrado produção a esse respeito. A academia luta para não cair no senso comum mas não investiga essa questão. Só fazendo um bom trabalho e muita pesquisa é que vamos conseguir quebrar estes paradigmas.
Também é importante trabalhar a relação com os pais. É fundamental chamá-los para dialogar. Estamos falando em respeitar a cultura deles, então é preciso trazer isto para dentro da escola e conversar. As referências do que eles viveram na escola são muito fortes, então não tem como enfiar essa situação de gênero garganta abaixo. É um processo longo, mas é algo a se construir para conquistar credibilidade e igualdade no futuro.

Para concluir…

A educadora Therezita Pagani, da Te-Arte, SP faz questão de manter figuras masculinas em sua equipe. Na sua visão brincar, criar, cuidar e educar não podem ser consideradas atividades femininas ou prolongamentos das funções maternas. Ao longo do desenvolvimento as crianças alternam momentos de conexão e identificação entre as figuras masculinas e femininas. E é ao experimentar essa alternância de modelos que constroem a própria identidade. Para Therezita, até os 7 anos o ser humano precisa desenvolver dentro de si as emoções masculinas e femininas para poder exercitá-las e, mas tarde, acessa-las com harmonia interna. Sem a figura masculina como modelo isso fica mais difícil.

Therezita reconhece que não é fácil encontrar homens dispostos a trabalhar na educação dos pequenos porque nossa sociedade não valoriza seu papel na Educação Infantil. Nesse caso, ela recomenda outras possibilidades para diversificar o contato das crianças com o sexo masculino no contexto da escola: pode ser o jardineiro, o auxiliar de cozinha, o funcionário de manutenção, o professor de música e outros profissionais que ocupem rotineiramente o espaço da instituição. Cabe então integrá-los à equipe, oportunizando a participação em formações, reuniões pedagógicas e momentos com as crianças. Afinal todos os profissionais da escola são responsáveis pela educação dos alunos.

A diretora Adriana concluiu nossa conversa dizendo que não é sempre que se pode encontrar um Wellington. Nós concordamos. Mas sem construir oportunidades no universo da Educação Infantil, não damos chances para os bons professores do sexo masculino se revelarem. Mais do que isso, não conseguimos transformar a pluralidade de gênero nas equipes pedagógicas como uma opção intencional.

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Para saber mais…

A Associação Nossa Turma é uma ONG que atende jovens e crianças de três comunidades de baixa renda e está localizada no CEAGESP (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo).
Participaram dessa conversa:
Wellington Santos Pais Landim – professor do CEI Nossa Turma
Maria Adriana Paciello Otomo – diretora do CEI Nossa Turma
Maria Martha Novaes dos Santos – Coordenadora do CEI Nossa Turma
Fabiana Guimarães – professora do CEI Nossa Turma
Maribel Polloni de Donato – diretora da Escola Ampliada da Associação Nossa Turma

→ Bibliografia – De volta ao Quintal Mágico – A educação infantil na Te-Artede Dulcilia Schroeder Buitoni – Editora Ágora, 2006.

4 comments

A questão de um professor do sexo masculino na equipe pedagógica em creches/escolas é muito difícil de ser aceito. Há 5 meses atrás, tive um acontecimento muito próximo ao tentar entra em uma equipe pedagógica em uma seguinte creche de Salvador, quando cheguei e passei por todas as etapas da seleção com mais ou menos 5 candidatos de ambos os sexos, eu fui “classificado” pelo RH de São Cristóvão, bairro localizado dentro da grande cidade de Salvador, onde a própria empresa me dispersou por um único motivo, eu ser do sexo masculino, ainda vindo me falar, “Você tem um currículo perfeito, pena que não é o perfil da empresa”, contudo eu lhe perguntei o porquê e ela respondeu, “você não é do sexo feminino, porém seu currículo esta ótimo”. Muitas vezes, sinto a negação das escolas/creches com profissionais só sexo masculino, e se o coitado for gay pior ainda, porque segundo as mentes dos pais/mães e coordenadores pedagógicos da instituição, homem tem que pegar AREIA e GRAVILHÃO, não é descriminado a seguinte área comparada, é porque a função é a mais próxima possível para uma comparação grotesca da sociedade machista.

Olá, Donaldo
Obrigado por compartilhar. Esta questão é importante e deve ser discutida em escolas e nas esferas públicas. A troca de informações e as discussões coletivas sobre esse e outros temas de discriminação encaminham as soluções e fazem parte da melhoria que queremos para a educação e a sociedade. Abraço.

A questão do uso do banheiro fica clara a dificuldade de lidar com a questão de gênero. Criança pequena está numa fase de conhecimento de si. Por isso algumas tem receio de usar o banheiro com qualquer pessoa que não seja de sua família. Vimos isso no início do ano. Fase da adaptação. Não há aí questão de gênero. Há 12 anos em creche já trabalhei com cerca de 8 professores homens e todos eles fazem as mesmas atribuições das mulheres. Trocar fraldas e levar crianças ao banheiro ensinando os procedimentos de higiene. Sempre nas primeiras reuniões de pais são apresentadas essas questões ouvindo as famílias, acolhendo e apresentando o trabalho feito pela escola.

Marisa,
Que ótima a sua contribuição para este tema! Acreditamos que a competência e a pertinência do magistério independe do gênero do professor, para qualquer faixa etária da criança. Seu depoimento colabora essa visão. Muito obrigada!
Abraços

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