Palavra de… Magda Soares: a linguagem escrita na infância

Palavra de… Magda Soares: a linguagem escrita na infância

O homem começou sua viagem na escrita quando a inventou há mais de 5000 anos. De lá pra cá tudo mudou: nosso pensamento ficou mais complexo, conseguimos registrar as trajetórias e acontecimentos da vida e a comunicação ganhou fronteiras e conquistou o tempo. É com grande prazer que o Tempo de Creche conversou com a educadora e estudiosa Magda Soares, pesquisadora de alfabetização e letramento que, em duas postagens nos conta como a criança percebe o universo da linguagem escrita, o que é alfabetização, o que é letramento e o que precisamos fazer para trabalhar esses processos.

Parte 1: Letramento ou alfabetização? Os dois!
Parte 2: Crianças e a reinvenção da escrita

menino escrevendo

Letramento ou alfabetização? Os dois!

Tempo de Creche – Qual é a diferença entre alfabetização e letramento?

Magda – Vivemos em culturas do escrito. Desde que o homem criou uma forma de tornar visível a oralidade por meio da escrita, a língua ganhou uma dupla face: ela é oral e ela é escrita, constituindo-se assim uma cultura do escrito ao lado de uma cultura da oralidade.

A cultura do escrito tem dois componentes. Por um lado, ela se originou na invenção de tecnologias que tornam visível a fala, quer por meio de grafismos icônicos que representam conteúdos (como os ideogramas, na escrita chinesa), quer por representações abstratas dos sons da fala, entre estas sendo a mais sofisticada a representação, por letras, não dos sons da palavra ou das sílabas, mas  dos elementos orais mínimos que compõem as palavras e as sílabas, os fonemas, elementos abstratos, não pronunciáveis isoladamente – o sistema alfabético de escrita.

Da invenção da tecnologia da escrita veio a possibilidade e a necessidade de representar a fala em suportes, que foram sendo descobertos ao longo do tempo (barro, madeira, pedra, papiro, pergaminho, finalmente papel e, hoje, também tela de computador). Veio também a possibilidade da multiplicidade de organização desses suportes em portadores de texto – em livros, revistas, folhetos, cartazes, etc. etc. – e ainda, com  a invenção da imprensa, a possibilidade de ampla difusão de material escrito, presente em inúmeras situações e contextos nas sociedades modernas, constituindo-se assim uma cultura do escrito.

Para plena inserção nesta cultura do escrito, as pessoas precisam aprender a tecnologia – a representação da cadeia sonora da fala na forma gráfica da escrita – e precisam desenvolver habilidades de reconhecer e de fazer uso adequado da escrita, sabendo ler e escrever em diferentes situações, para diferentes interlocutores, com diferentes objetivos.

menina escrevendoA aprendizagem da tecnologia se reserva a denominação de alfabetização; as habilidades de fazer uso dessa tecnologia nas práticas sociais que envolvem a escrita constituem o letramento. São processos diferentes, porque demandam operações cognitivas específicas na apropriação de objetos específicos de conhecimento. Um sistema convencional de escrita e habilidades de uso desse sistema, portanto, pressupõem metodologias de ensino específicas, mas são indissociáveis e interdependentes, porque a alfabetização se desenvolve por meio do convívio com material escrito, em contexto de letramento, e o letramento, por sua vez, se realiza por meio do uso da tecnologia. Não se aprende um sistema convencional sem saber para que serve; não se faz uso de um sistema convencional se não se tem o domínio dele.

Tempo de Creche – Qual vem primeiro, alfabetização ou letramento?

Magda – Na história da humanidade, a alfabetização veio primeiro, porque era preciso ter a tecnologia para a produção de material escrito e para o uso dela em práticas de leitura e escrita. As práticas foram se multiplicando à medida que o domínio da tecnologia foi sendo propiciado a grupos cada vez maiores, e os recursos de produção e socialização de material escrito foram avançando e assim ampliando a oferta e, portanto, a demanda desse material, sob suas diferentes formas – portadores diversos – livros, jornais, revistas, folhetos, cartazes e tantos outros materiais que portam, carregam textos em  numerosos gêneros textuais.

DesenhoTanto cresceu e se difundiu o material escrito que, nos tempos modernos, o letramento precede de certa forma a alfabetização: as pessoas vivem em um mundo letrado, rodeadas pela escrita, reconhecem portadores e usos da escrita, antes mesmo de adquirirem a tecnologia – como acontece com a criança. Aliás, pode-se dizer que, se a tecnologia possibilitou o letramento, em seguida o letramento é que passou a demandar a tecnologia.  Assim acontece na vida da criança: ela nasce rodeada de escrita, seja em que contexto social for nas sociedades atuais centradas na escrita, vê a língua escrita com frequência à sua volta, observa pessoas lendo e escrevendo – vai compreendendo os usos e as práticas sociais da escrita, vai se letrando. Esse letramento desperta a curiosidade e o desejo de aprender a tecnologia, e a criança  vai progressivamente se apropriando dela, por meio da família e, sobretudo, por meio da instituição escolar.

Tempo de Creche – Qual é a expectativa sobre o desenvolvimento do letramento na primeira infância?

Magda – Como disse, desde muito pequena a criança já se vê envolvida em atividades de letramento:

  • vê a escrita nas latas e pacotes de alimentos servindo para dizer o que está dentro,
  • vê jornais e revistas,
  • vê a conta de luz e de água, que a mãe, o pai examinam longamente,
  • vê faixas penduradas pelo caminho,
  • vê anúncios na porta de lojas,
  • out-doors nas ruas…

Menina e o desenhoEstou dando exemplos do que pude constatar na creche comunitária e no contexto da favela e, em seguida, no convívio com crianças de escolas públicas e suas famílias.

A criança mostra logo curiosidade para saber “o que está escrito aqui”, rabisca, tentando imitar as pessoas escrevendo, segura o livro como se estivesse lendo… isso ocorre desde os 18 meses, os  2, 3 anos, e vai se acentuando ao longo do desenvolvimento.  Lembre-se que as pesquisas de Emilia Ferreiro, e as muitas outras que foram feitas no quadro da psicogênese, tiveram como sujeitos crianças de 3, 4, 5 anos.

Assim, já na primeira infância, as crianças estão se desenvolvendo em letramento e tentando compreender que risquinhos são esses que se transformam em palavras pronunciadas pelo adulto… ou risquinhos que significam o nome delas… O que cabe à instituição educativa, desde a creche, é colaborar para que esse desenvolvimento espontâneo não seja interrompido, ao contrário, seja enriquecido e orientado com oportunidades intencionalmente planejadas para que, como ensinou Vigotsky, a aprendizagem colabore com o desenvolvimento.

Desenho 1Oportunidades como:

  • convívio das crianças com diferentes materiais escritos, livros, revistas, jornais, etc.;
  • convívio com diferentes situações de leitura e de escrita, por exemplo: a professora, lendo uma história, leva a criança a perceber que parte da página está lendo, distinguindo assim ilustração de texto, leva-as a perceber como está lendo, ao ir passando o dedo nas linhas de cima para baixo, da esquerda para a direita, orienta-as a folhear um livro a partir da capa, passando folha a folha…;
  • ao escrever um nome, uma frase, a professora deixa claro para a criança que está transformando em letras os sons que pronuncia, que está escrevendo de cima para baixo, da esquerda para a direita…

Tom Zé fala do seu letramento

As crianças desde cedo aprendem, com a família ou com a primeira professora, a copiar seu nome, até mesmo a memorizar a escrita de seu nome, cabe a professora ir levando-as a perceber que são letras que representam os sons do nome, mostrando, por exemplo, que o nome de duas crianças “começa igual” quando são falados – Maria e Marisa, por exemplo – e como, na escrita, também “começam igual”, já levando as crianças a compreender que a escrita representa os sons da fala, e que essa representação se faz com letras.

Bebe desenhandoAs crianças desde cedo tentam “escrever”: primeiro, desenhando, aos poucos rabiscando, fazendo garatujas, começam a usar grafismos que procuram imitar letras, chegam a escritas espontâneas, em que revelam suas hipóteses sobre a escrita. Tudo isso acontece na Educação Infantil, corresponde às fases de desenvolvimento da criança nessa faixa etária.  Atividades como essas vão desenvolvendo conhecimento de convenções da escrita, das características do sistema alfabético – a escrita representando os sons com letras, desenvolvendo habilidades cognitivas de apropriação progressiva desse objeto cultural que é a escrita.

Orientamos desde cedo a criança a apropriar-se de objetos culturais os mais variados – como abrir e fechar uma caixa, como encaixar um cubo em outro em um brinquedo, como segurar a mamadeira, depois a colher, como cantar parabéns, bater palmas, como mostrar com os dedinhos quantos anos tem…; também é necessário orientar a criança para a apropriação deste outro objeto cultural tão presente em sua vida, a língua escrita.

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Para saber mais…

 Aguarde a segunda parte da conversa com Magda Soares: Crianças e a reinvenção da escrita

MAGDA-SOARES→ Magda Soares é professora emérita da Faculdade de Educação (FAE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), e um dos maiores nomes na área de alfabetização e letramento, com ênfase em ensino-aprendizagem. Nas suas palavras…

…Minhas atividades de pesquisa, publicação, docência têm como quadro de referência a Linguística e a Psicologia Cognitiva numa perspectiva sociocultural, e como objeto o desenvolvimento e aprendizagem da língua escrita – alfabetização e letramento – ao longo da Educação Infantil e do Ensino Fundamental: aprendizagem de um objeto linguístico por meio de operações cognitivas em um contexto que se caracteriza pela presença forte da língua escrita na sociedade e na cultura.

Comecei minha vida profissional lecionando alfabetização e letramento em escolas públicas, ingressando depois na Universidade, em que sempre trabalhei, na docência, na pesquisa e na produção acadêmica, com o quadro de referência e o objeto indicados acima, voltada sempre para a escola pública. Quando me aposentei, meu objetivo foi retornar à escola pública, para vivenciar diretamente aquilo sobre que falamos e pesquisamos na Universidade – queria compreender por que nossas muitas’ teorias’ não mostravam resultados nas práticas de ensino nas escolas públicas. Em um primeiro momento, fui voluntária durante 5 anos em uma creche comunitária de uma favela de Belo Horizonte, cooperando com as educadoras, moças da comunidade. Tendo a creche perdido condições de continuidade, tornei-me voluntária em uma rede municipal de educação, em município próximo a Belo Horizonte, e lá estou há 10 anos, compartilhando com as professoras a alfabetização e o letramento de crianças de toda a rede, da Educação Infantil, creche e pré-escola, e do Ensino Fundamental, do 1º ao 5º ano, não como pesquisa, mas como parceria, em um processo de desenvolvimento profissional tanto das professoras como de mim mesma, que muito tenho aprendido com esta experiência de articulação teorias-práticas.

→ Leia mais sobre alfabetização e letramento nas postagens:
Letramento e Alfabetização: qual o caminho para a Educação Infantil?
Letramento no dia a dia: gradual lúdico e significativo
O que o Fundamental espera da Educação Infantil?meu ip

4 comments

Encantada com essa página. Foi um achado. Trabalho na Educação Infantil e Magda soares é sem dúvida a luz da minha prática. Aprendo muito com seus textos. aborda questões reflexivas de forma simples que todos entendem.

Sou fã da Sra. Magda Soares não somente pelo conhecimento que demonstra ter, mas pela iniciativa de auxliar os professores na prática.

Parabéns pela reportagem! Magda Soares sempre acrescenta contribuições relevantes, embasando a nossa prática pedagógica.

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