Palavra de … Josca Baroukh: a criança e o acesso à Arte

Palavra de … Josca Baroukh: a criança e o acesso à Arte

Em entrevista ao Tempo de Creche a professora Josca Ailine Baroukh fala sobre a  importância do acesso das crianças e dos professores à Arte como alimento para as múltiplas formas de expressão

Tempo de Creche – Como você vê a arte no currículo da Educação Infantil? E a Arte na formação dos professores?

Josca Se nós considerarmos que a arte se apresenta em várias linguagens e que as crianças pequenas se expressam pelas 100 linguagens, como diz Lóris Malaguzzi, o acesso a essas linguagens é fundamental para sua formação. As crianças têm direito de conhecer as várias linguagens da arte, pois elas se expressam por meio delas.

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Se nós não ensinarmos uma criança a falar, inserindo-a em contextos de fala, ela não vai usar a linguagem verbal. Da mesma forma, se nós não ensinarmos as linguagens artísticas, ela também não vai utilizá-las para se manifestar. As crianças se expressam de muitas formas diferentes, quanto mais se oferecer a elas acesso às diversas linguagens, mais poderão se manifestar à sua maneira. É um dever do educador oferecer e promover a elas o acesso às múltiplas linguagens.

O educador ensina o que sabe e não atribui importância ao que não conhece. Se o educador não foi atravessado pela experiência (no sentido atribuído por Larrosa) de desenhar, pintar, dançar, criar, compor, cantar, produzir som de tantas formas, não se apropriou delas o suficiente para oferecê-las às crianças. O educador não precisa ser um artista, mas necessita conhecer as linguagens artísticas. Se não for assim, ou ele não vai promovê-las ou ele vai fazê-lo porque a escola exige, mas de uma maneira mecânica, sem a riqueza que é a exploração da linguagem. Ele só ensina o que sabe.

Tempo de Creche – Nesse sentido, como é a formação do professor?

Josca O aluno de pedagogia tem Arte na graduação, mas isso não quer dizer que ele vai se experimentar. Existem boas experiências e outras extremamente limitantes – vai depender muito da maneira com que o curso da graduação aborda o assunto.  Por isso, é importante que as linguagens artísticas sejam tratadas ao longo da formação continuada, segundo o projeto pedagógico da escola em que ele atua, porque o professor aprende durante toda a vida. Ele avança com o projeto pedagógico e também o faz avançar.

Tempo de Creche – É uma questão de não ficar restrito às experiências de formação e transformar isso num hábito do dia a dia?

Josca Deve haver um esforço pessoal do educador no sentido de conhecer o que a cidade oferece, o que a humanidade já construiu. Hoje, os meios de comunicação conseguem oferecer acesso a esse conhecimento – não se consegue ver a obra ao vivo e em cores, mas é possível conhecê-la pela internet, pelos livros.

Ernesto NetoConhecer não é só ver. Conhecer é apreciar – seja nas artes visuais, na dança, na música, no teatro ou na literatura. É conhecer o contexto, o significado da produção das obras no momento histórico em que foram produzidas. Mais importante do que estudar profundamente a biografia do artista ou do autor, é conhecer o momento histórico em que viveram. Vamos pensar juntos: o que é uma instalação? Essa modalidade não existia e passou a existir na contemporaneidade. Por que será? Por que a pintura foi mudando ao longo da história? Por que os movimentos artísticos aconteceram? Tudo tem um encadeamento e uma história.
Alfredo VolpiConhecer o contexto, experimentar-se nos materiais, arriscar-se a fazer o que não se sabe – encarando a vida dessa maneira, é possível criar, é possível dizer “não sei, vou aprender, vou conhecer”. Não vamos conhecer tudo de uma vez, mas de pouquinho em pouquinho. Por exemplo, quando comecei a apresentar as obras de Alfredo Volpi ou a trazer músicas new age para meus alunos de seis anos, foi por eu gostar do artista e desse gênero musical – levei para eles e ao mesmo tempo me propus a estudar. Não estudei antes, mas compartilhei com as crianças aquilo que me dava prazer e fui buscar as razões porque me davam prazer.

Gustav KlintDa mesma forma, quando comecei a apresentar as obras de Gustav Klimt é que fui estudar o movimento Secessão na Áustria*, o que acontecia na Europa naquela época. Não contei toda esta história para as crianças, mas o fato de ter isto dentro de mim facilitou apresentar as obras desse artista de uma maneira significativa. O que tem significado para cada um de nós é mais fácil de apresentar. O brilho no olho, o encanto que transparece na voz cativa e contagia.

É preciso também desconstruir o modelo de Arte que comumente se tem, daquela Arte que fica longe de nós. A Arte está ao redor de nós todo o tempo. Basta olhar os muros da cidade. Pode ser que você não goste, mas a Arte está aí. E como é que nos relacionamos com ela? Será que reconhecemos seu valor como uma manifestação artística? Será que falamos é uma pichação e acabou? Entende-se porque ela existe como manifestação, por que tem pessoas que a usam para se manifestar? Pode-se gostar ou não, mas não é o suficiente. É necessário entender o que está acontecendo em um contexto mais amplo. A Arte Contemporânea não é muito fácil de entender, porque ela está muito próxima de nós. É fundamental estar conectado com o que está acontecendo na própria cidade, para assim ir tecendo relações. As exposições, os saraus, as peças teatrais, as leituras de poesia e teatrais, as ações de dança na rua…

Tempo de Creche – Algum dos movimentos das artes visuais é mais adequado para ser trabalhado com as crianças pequenas?

Josca Eu penso que as crianças se aproximam de qualquer coisa, de qualquer conteúdo. Elas não se aprofundam como algumas pessoas esperam, mas vão se aproximar, se apropriar, apreciar e experienciar aquilo que elas podem e que passa a fazer parte delas. Eu não gosto de censura. Acho que as crianças têm direito de ter acesso a tudo, respeitando sua condição de criança.

Tempo de Creche – As crianças se apropriam mais de obras bidimensionais ou tridimensionais

Josca Elas se aproximam dos dois, depende do momento que estão vivendo, pois cada uma tem seu percurso criativo. Eu me lembro de uma aluna que passou o ano inteiro desenhando sereias – e nenhuma era igual à outra. Ela ia do desenho para pintura, voltava, sempre investigando as sereias – ela estava exatamente explorando seu percurso pessoal. Tinha época em que sua experimentação ia mais para as cores, tinha época em que ia mais para as linhas. Até que um dia, ela se deu por satisfeita.

Da mesma forma que nós pesquisamos o que nos interessa, as crianças se aproximam das obras, investigando o que as interessa. Se elas estão na exploração do bidimensional, elas vão para este lado naquele momento, ou vão se aproximar mais dos elementos, como por exemplo, a linha, seja no bi ou no tridimensional. É um percurso subjetivo, um percurso pessoal. Se nós tivermos uma escuta e um olhar atento, podemos nos aproximar e perceber que pesquisa a criança está fazendo.

Tempo de Creche – Mais um pouco sobre a Arte Contemporânea. Existem correntes que dizem que a Arte Contemporânea é muito mais acessível para as crianças? Como você vê essa afirmação?

Josca As crianças não têm o preconceito que os adultos têm, por isso é mais fácil para elas. Elas exploram aquilo que se oferece e se permite. Eu acredito que elas podem apreciar qualquer obra.

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Ao trazer uma obra, projeto, livro, ou levar os alunos a uma exposição, que tipo de pergunta se faz?  Aquelas “perguntas e respostas”: o que você mais gostou? Ou, na literatura, qual é o personagem principal? Será que são boas perguntas? São perguntas frequentemente utilizadas pelos professores que ainda acreditam que só se deve fazer perguntas que têm respostas únicas e exatas. Outra opção é perguntar: o que te chamou atenção nesta história? Por quê? Neste segundo tipo de pergunta, se convoca o leitor/expectador, sua subjetividade.

Tudo o que se fala sobre leitura de qualquer uma das linguagens artísticas, incluindo a literatura, são intercambiáveis. Não existe uma única resposta certa. Quando se busca uma única resposta certa, se está empobrecendo a relação com a Arte, algo que é tão subjetivo. Por outro lado, quando se permite que a subjetividade aflore, ela se abre para o campo da discussão e as crianças trarão elementos subjetivos também. Empobrece quando se busca só aquilo que é observável.

Nós precisamos nos conformar enquanto educadores, de que muito do que trabalhamos no dia a dia não é observável, porque está na esfera da constituição do sujeito. Estou falando especificamente dos bem pequenos, de zero a três, até de zero a seis anos. Isto não quer dizer que não há observáveis, mas eles não são tudo.

Se entendermos que educação é um encontro de subjetividades, talvez haja mais investimento do professor em si próprio – procurando se entender mais e perceber seus gostos, até colocar isso em palavras, de maneira a ter mais consciência de si próprio.

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Falamos também sobre Arte nas seguintes postagens:

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* A Secessão de Viena ou Secessão Vienense (1897-1920) foi o movimento de um grupo de jovens artistas no final do século XIX, liderado por Gustav Klimt, que desejava romper com o que representava a Cooperativa dos Artistas das Artes Decorativas da Áustria, fundada em 1861, e protestava contra as normas tradicionais, artísticas e étnicas da época.

Jorge Larrosa é doutor em Pedagogia e professor de Filosofia na Espanha. Para ele, educar é estabelecer a relação entre a criança e o mundo e gerar um espaço para o imprevisível. Ele acredita que a experiência significativa é aquela que nos toca e marca e por isso transforma. É um dos magos inspiradores do Blog Tempo de Creche.

josca 8Josca Ailine Baroukh

Graduada pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, com especialização para professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental no Espaço Pedagógico. Atualmente, é coordenadora do curso de pós-graduação “Crianças de 0 a 3 anos: formação de profissionais para as infâncias do Brasil” no Instituto Singularidades e formadora de gestores e professores da Educação Infantil e dos primeiros anos do Ensino Fundamental das redes pública e particular em São Paulo, SP.

 

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