Palavra de… Monica Ehrenberg: a criança não tem um corpo, ela é um corpo

Palavra de… Monica Ehrenberg: a criança não tem um corpo, ela é um corpo

trabalhando o corpo do bebêPara a professora de Educação Física e doutora em Educação, Monica C. Ehrenberg, a criança não tem um corpo, ela é um corpo. Pensar na criança como um indivíduo, é entender que ela é um conjunto de capacidades motoras, cognitivas, sociais e culturais. E, portanto, ela tem uma história que não é menor, mas diferente da nossa. Conhecer e compreender isso favorece o trabalho adequado ao desenvolvimento dos pequenos, em todos os aspectos.
Nesse sentido, o olhar para as crianças precisa partir do olhar que temos para nós mesmos.
Tem criança que não gosta de dar a mão para um tal colega, que não curte tirar o sapato ou não se sente confortável em sentar de índio. Será que todos os adultos gostariam de dar mão para qualquer pessoa numa roda? Todos nós nos sentimos bem sentando de índio? Não temos nossas preferências individuais?
E a limpeza dos narizes? Já pensou se alguém limpar o seu nariz da mesma forma com que passamos o papel no nariz dos pequenos?

Pensar em questões como essas é trabalhar o olhar respeitoso. É não esquecer que a criança é um sujeito.

Tempo de Creche – Qual que deve ser a atitude do professor em relação aos comportamentos diversos das crianças nas situações de grupo?

Mônica – O foco do professor precisa estar no objetivo da proposta. Não me incomoda se a criança está sentada, de pé ou andando, desde que ela esteja integrada ao objetivo. Por outro lado, me incomoda muito ver o professor propor que todo mundo tem que estar sentado na roda de história com a perna numa posição específica. Uma criança que levanta, sai da roda, vai fazer uma coisa e pegar outra, nem sempre se dispersou da história. Cada um aprende de um jeito. Tem gente que estuda para a prova com o fone de ouvido. Está ouvindo música e estudando. E vai bem! Nesse caso, porque ao estudar para a prova tem que haver silêncio absoluto? Esta é uma forma de estudar. E pode não ser a sua! Assim, a criança que levanta da roda de história pode estar com a escuta ativa na narrativa.

Lidar com as diferenças é lidar com o fato de as pessoas aprenderem de maneiras diferentes. Lidar com gente é plural.

Outra dificuldade do professor é achar que as crianças têm que aprender da forma como ele aprendeu quando pequeno. O aprendizado do professor está em lidar com a maneira de ser de cada um.

Corpo e cultura

Tempo de Creche – À medida que a criança cresce, consegue ficar mais focada. Mas o corpo parece diminuir os movimentos também. Isso acontece naturalmente ou o sistema escolar está engessando as crianças?

Mônica – É exatamente isto. Não é somente o sistema escolar, é o sistema da sociedade contemporânea ocidental que vai educando este engessamento. A criança é muito aberta, mas a gente vai fechando, fechando, e ela vai se adaptando. O ser humano é adaptável e se adapta muito facilmente a quase tudo. Foucault* falava sobre isso, a gente vai adestrando, moldando, ressignificando, enclausurando. Fazemos isso o tempo todo e pedimos para a criança ser criativa! Quando percebemos que ela não é, ficamos chateados… mas fomos nós mesmos que dissemos para ela que o patinho tinha que ser pintado de amarelo.

Tempo de Creche – Esta criatividade começa no corpo? O uso do corpo também é criativo?

Mônica – Queremos que a criança crie composições, explore o espaço, mas não damos as ferramentas. Na Educação Infantil temos as salas sem cadeiras e mesas. Ótimo, maravilha! Aí a criança vai crescendo e vamos colocando algumas aqui, outras ali… mais e mais… até que tem uma cadeira para cada um e “ai de quem levantar do seu espaço”. Vamos limitando e não só na escola, em casa também. O espaço oferecido para a criança não precisa ser “divertido”, ele tem que ser prazeroso.

O corpo na Educação Infantil é mais discutido, mas não é necessariamente mais bem trabalhado. Tem escola que organiza propostas de cantos de atividades diversificadas e planeja o “canto do movimento”. O que isso quer dizer? Que no canto da casinha, da fantasia, do jogo de montar não têm movimento? Então esses movimentos não são trabalhados com intenção?

Propomos uma atividade para as crianças correrem daqui até ali. Uma criança faz o percurso em ziguezague, a outra contorna e vai por fora, mas todas chegam ao mesmo lugar. Admitir essa variação é respeitar o sujeito.

propostas para trabalhar o corpo

Tempo de Creche – A formação dos professores contempla o entendimento da criança por inteiro, mente e corpo?

Mônica – Essa questão tem pouco espaço na formação inicial em pedagogia e tem instituições que nem abordam isso. Na USP temos a matéria Metodologia de Ensino de Educação Física. Dependendo da instituição, trabalha-se com uma educação física esportivisada, mecanicista e que não contribui para a ideia de sujeito de corpo inteiro de que estamos falando.

Quando digo para os meus alunos de pedagogia: vamos pensar a criança com o corpo dela? Estamos falando de criança e não de corpo de criança. É uma coisa só. Eu não tenho corpo, eu sou corpo.

Tempo de Creche – O que o professor que não tem uma formação sólida nessa questão pode fazer para conhecer, compreender e ver diferente?

Mônica – Não existem cursos de especialização ou de formação continuada nesse tema, mas existem outros recursos. O SESC, por exemplo, oferece cursos para difundir a dança brasileira, jogos, brincadeiras e artesanato. Ao frequentar, conseguimos levar essas vivências para a escola. Porém, nem todo professor tem disponibilidade.

Tempo de Creche – Na verdade estamos falando de ir procurar outros recursos, não especificamente um “capítulo da Educação”, mas vivenciar o próprio corpo com outras possibilidades?

Mônica – Tem brincadeira em que é necessário que as crianças deem as mãos. Aí tem uma criança que diz: eu não quero dar a mão para o fulano!Então, o professor repreende: tem que dar! Todo mundo aqui é amigo. Mas isso não é verdade. Eu não sou amiga de todo mundo. Quando estamos em um grupo de adultos, também não queremos dar a mão para um ou outro. Vivenciar um pouco esses desconfortos faz a gente respeitar a criança. Nesse caminho, sentir as próprias potencialidades também ajuda a compreender o outro. Fazer este tipo de curso amplia as possibilidades de se perceber.

Nosso papel, enquanto educadores, é construir cidadãos sociáveis, que possam se apropriar de si mesmos criticamente. Assim, nossa função não é dar o exercício pelo exercício, como nas dancinhas de final de ano. Temos que fazer propostas com significado para as crianças. A dancinha “bonitinha” que não foi construída por elas e não teve significado, não é “dancinha das crianças”, é dancinha do professor!

Para concluir, Mônica destaca as palavras de João Batista Freire, no livro Educação de Corpo Inteiro:

educacao-corpo-inteiro“Fica difícil falar de Educação concreta na escola quando o corpo é considerado um intruso. (…) Sem viver concretamente, corporalmente, as relações espaciais e temporais de que a cultura infantil é repleta, fica difícil falar em conhecimento significativo, em formação para a autonomia, em democracia e assim por diante. Sugiro que, a cada início de ano letivo, (…) também o corpo das crianças seja matriculado”

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Balão-Para-Saber-Mais

1910631_1479987835580672_1172639037844823632_nMônica Caldas Ehrenberg é graduada em Educação Física e doutora em Educação. Também é professora da Faculdade de Educação da USP.

 

*Michel Foucault  (1926 a 1984) foi um filósofohistoriador das ideiasteórico socialfilólogo e crítico literário. Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Foucault acabou rejeitando seus rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas.

3 comments

Sim cada criança pensa diferente não podemos querer que todas sejam iguais… e viva a diferença!!!

Obrigada pelas contribuições! Trabalho com crianças de 3 e 4 anos e sei o quanto o corpo fala e pede movimento! Pude repensar algumas práticas, os comportamentos diversos e a necessidade de aprender e reaprender a lidar com a maneira de ser de cada um.

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