Já ouviu falar sobre a defasagem de 30 milhões de palavras?
Essa é a conclusão de uma pesquisa que comparou a quantidade e a qualidade das palavras ouvidas pelas crianças nos três primeiros anos de vida e a relação com os recursos e o nível educacional das famílias.
Como o ambiente influencia o desenvolvimento da linguagem da criança? Como contribuir com essa aprendizagem?
O desenvolvimento da linguagem e seus efeitos têm sido estudados por um número cada vez maior de pediatras e neurocientistas em todo o mundo. Um artigo lançado neste mês na revista científica americana JAMA Pediatrics conclui que o número de palavras ouvidas pelas crianças de 0 a 24 meses começa a revelar consequências a partir de 9 meses de idade, e fica mais evidente aos 2 anos. Em resumo, o que a criança escuta desde o nascimento tem influência no vocabulário que ela terá aos 2 anos. As consequências da falta de vitamina da palavra* levam ao atraso na alfabetização, ao desempenho escolar abaixo do esperado e dificuldades sociais e econômicas.
Hart e Risley, os pioneiros dessa abordagem, eram estudiosos da educação infantil em contextos de pobreza e guerra nos anos de 1960. Frustrados com os resultados inexpressivos das ações que buscavam melhorar o desenvolvimento da linguagem na educação infantil, levantaram a hipótese de que, se a escola estava desenvolvendo um bom programa com as crianças, então as diferenças na qualidade da linguagem deveriam estar associadas ao que acontecia em casa. Assim, decidiram mudar o foco de suas pesquisas investigando o que a criança ouve dos adultos cuidadores (professores e familiares) a partir de sete meses até três anos de idade.
Os resultados foram impactantes. Primeiramente eles descobriram que mais de 86% das palavras utilizadas pelas crianças aos 3 anos eram iguais àquelas ouvidas de seus cuidadores.
Aprofundando a análise, apuraram que crianças que viviam em lares de baixa renda e/ou baixo nível educacional, ouviam uma média de 616 palavras por hora. E as que viviam com famílias de classes sociais mais abastadas e/ou melhor nível educacional, ouviam pelo menos o dobro de palavras por hora (de 1250 a 2150 palavras por hora, aproximadamente).
Desse modo, os pesquisadores concluíram que, ao longo dos primeiros quatro anos de idade, as crianças pobres ouvem 30 milhões de palavras a menos que as crianças de famílias com melhores recursos.
Vamos refletir sobre alguns pontos:
1- Nós pensamos por meio de palavras. Qualquer pensamento que passa pela nossa cabeça é formulado em palavras. Assim, quanto melhor for o nosso vocabulário, mais complexo será o nosso pensamento.
2- O estudo de Hart e Risley confirma que todos os envolvidos na educação e cuidado das crianças – famílias e escolas – são os responsáveis diretos pela linguagem que elas aprendem.
3- Os pesquisadores também avaliaram um grupo diversificado de jovens e perceberam que a defasagem no número de palavras ouvidas na infância se reflete no desempenho escolar do ensino médio.
O que podemos pensar sobre isso?
No nosso contexto, a educação infantil abriga crianças por longos períodos do dia. Em geral os pequenos entram às 7 da manhã e muitos só voltam para casa às 17 horas. As instituições são, então, responsáveis por grande parte do dia em que as crianças estão acordadas e em atividade. Portanto, a responsabilidade pelo desenvolvimento da linguagem é grande.
O professor precisa criar oportunidades para dialogar e traduzir em palavras o que as crianças pequenas sentem e percebem do mundo. Um exemplo prático é complementar o que a criança diz, depois de dar oportunidade para ela se expressar:
Criança- “carro caiu!”
Professor- “o seu carro caiu da mesa?”
Ou
Criança apontando para o prato de comida- “mais!”
Professor- “você quer mais comida? E suco de laranja? Está saboroso?”
O momento da roda é outra oportunidade preciosa para promover a linguagem. Porém, como qualquer proposta, é necessário que o professor se prepare para promover diálogos participativos. As crianças precisam de oportunidades para pensar, se expressar à sua maneira e perceber que aquilo que falam tem importância. Diálogo não é monólogo do professor!
Sobre o que vamos conversar?
Qual tem sido o interesse das crianças?
O que posso levar para a roda que provoque e instigue a conversa?
Quais atividades elas gostam de lembrar?
O que comeram no café?
Uma boa dica, além dos livros e contação de histórias, é levar imagens ou objetos interessantes e começar a perguntar sobre eles. Com o tempo as crianças se sentem provocadas e contribuem com a conversa. Crianças gostam de desafios e de resolver problemas.
Segundo o estudo de Hart e Risley, as famílias precisam se empenhar em dialogar com suas crianças, porém nem todos os adultos reconhecem nos pequenos a capacidade de “conversar”. Não consideram os gestos, expressões faciais e balbucios como respostas à conversa. Nesse sentido a escola pode orientar e incentivar as famílias.
Uma proposta que teve ótimos resultados e colhe frutos até hoje, foi desenvolvida pelo CEI Nossa Turma, SP no início desse ano. A equipe selecionou livros infantis do seu acervo para que as crianças levassem para a casa por uma semana. Também combinaram com as famílias que planejassem um momento para ler as histórias em conjunto.
A iniciativa mostrou resultados positivos imediatos. As famílias se empenharam e enviaram registros incríveis! Perceberam que as crianças compreendiam os enredos, estabeleceram diálogos e se divertiram. Abriu-se uma porta para aprofundar o vínculo das famílias com as crianças e com a instituição. Ampliou o repertório de palavras aprendidas e o gosto de todos os participantes pela leitura. Agora o CEI está em campanha permanente para captar mais livros.
Boas conversas e literatura inspiram, ampliam o repertório de palavras e melhoram o raciocínio, dando sentido ao que somos e ao que nos acontece**. A parceria escola e famílias potencializa a educação e o desenvolvimento das crianças.
* “vitamina palavra” é uma inspiração sobre o termo Vitamina N (Natureza) criado pelo jornalista americano Richard Louv
** Citação de Jorge Larrosa
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The Thirty Million Word Gap – Betty Hart and Todd R. Risley. (2003). Disponível em http://literacy.rice.edu/thirty-million-word-gap
The 30 Milton – Word GapRelevance for Pediatrics – Risley. Jenny S. Radesky, Judith Carta, Megan Bair-Merritt – Jama Pediatrics (2016). Disponível em http://archpedi.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=2531460
→ Leia mais sobre o desenvolvimento da linguagem nas postagens:
- Neurociência, aprendizagem e desenvolvimento infantil – 2 a 6 meses
- Neurociência, aprendizagem e desenvolvimento infantil – 6 a 12 meses
- Neurociência, aprendizagem e desenvolvimento infantil – 12 a 18 meses
- Neurociência, aprendizagem e desenvolvimento infantil – 18 a 24 meses
- Qualidade das palavras e dos brinquedos: tem relação?
- Crianças e histórias: uma relação para a vida